Birras Existem?

 

Aposto que, se você, como muitos pais em diversos países, está mais familiarizado com a educação tradicional e mais conservadora, seu primeiro impulso ao ler o título deste artigo talvez tenha sido pensar: “É claro que existem, que tipo de pergunta é essa?!”. Talvez você até tenha feito uma careta, ficou um pouco nervoso, o sangue ferveu em suas veias e, ao pensar que seja possível questionar a existência das birras, talvez você tenha sentido algo parecido com “perder o chão”. Ao final, você pode estar pensando, se elas não existem, o que é isso que eu vivo diariamente com os meus filhos então? Que nome devo dar a essas explosões emocionais desreguladas que ocorrem só porque eu não deixei o meu filho sair de camiseta curta quando estava zero graus lá fora, ou porque tentei ajudar ele a calçar os sapatos ou mesmo só porque eu o chamei para comer enquanto ele estava concentrado em alguma brincadeira?”

Vamos imaginar o seguinte. Imagine que você está tendo um dia desafiador no trabalho, você estava realizando uma tarefa que demandava muito foco e concentração, sua colega da mesa ao lado não para de interromper para fazer comentários sobre o que você está fazendo. Ela para na sua mesa, lê o que você escreve e dá opiniões que você nunca pediu, às vezes até mesmo tentando te ensinar como fazer, sem nem considerar que você estava quase conseguindo sozinha. Ela repete coisas como: “Não esqueça essa parte” ou “Não faça assim”…Você termina a tarefa e apresenta a sua chefe, que faz um comentário breve sem nem parar por alguns minutos para realmente olhar como ficou o que você levou muito tempo e esforço para realizar. Você se sente sobrecarregada pelas interrupções de sua colega e frustrada pois seu trabalho não foi reconhecido. Você pede então a sua chefe para participar de outras tarefas na empresa, que outros já estão envolvidos e que parecem mais interessantes, sua chefe mesmo dá mais atenção a essas tarefas. Mas ao invés de te incluir nas atividades, você recebe vários nãos: “Não toque nisso, você vai estragar”;  “Fique quieto, está me atrapalhando”, “saia dai”, “Não pegue isso”. Você se sente incapaz, invalida, um incômodo para a sua equipe. No final do dia, você está muito cansada, nada do que você queria saiu como planejado, você recebeu muitas respostas negativas e pouca confirmação de que era necessária ali. Você começa a chorar, foi demais para você, você sente raiva, frustração, tristeza, desamparo, tudo ao mesmo tempo. Quer largar seu emprego, mudar de cidade, de país. Uma colega se aproxima, tudo o que você queria agora era ser acolhida, mas ao invés disso sua colega diz para você parar de chorar, pois você já está grande e não aconteceu nada de mais. 

Se você pensou: “Se você está realmente comparando esse dia terrível no trabalho com a crise de choro que meu filho teve enquanto se jogava no chão só porque ele queria sair com a camisa do lado contrário e eu não deixei, você está louca”. Vamos analisar isto juntos! 

Sabe qual a diferença entre estes dois exemplos? Você é um adulto, em teoria aprendeu a regular as suas emoções. Se não aprendeu, pelo menos detém em si esse poder, mesmo que não saiba usar. As crianças não têm esse poder. Seu cérebro ainda não desenvolveu essa habilidade. Conforme elas crescem e o cérebro amadurece, esse super poder de regular as próprias emoções fica disponível, mas elas precisam aprender a usar. Sabe como elas aprendem? Observando VOCÊ regular suas próprias emoções. Quando você sente emoções desafiadoras e lida com elas de uma maneira saudável, a criança observa e aprende como fazer. Com o tempo, isto é, alguns anos, ela passa a fazer isso sozinha. Mas até lá, elas se regulam através da co-regulação emocional, você se regula, ela se regula com você. 

As crianças não se jogam no chão porque elas querem ver você passando vergonha, para testar os limites dos pais ou deixar você maluco. Elas se jogam no chão porque elas não sabem o que fazer com tantas emoções e se desregulam a um nível que não conseguem lidar com elas e manter a calma. No livro O Cérebro da Criança de Daniel J. Siegel e Tina Payne Bryson, os cientistas observaram que o cérebro da criança é dividido em diferentes níveis, sendo os níveis inferiores mais ativos até uma certa idade, quando os cérebros superiores terminam de se desenvolver. Quando a criança passa por uma desregulação emocional causada por algum evento cotidiano, o cérebro superior, que está em formação, e o inferior, que é mais básico, se desconectam. É como se na escada que os ligava fosse colocada uma grade e a criança perdesse o acesso a parte mais racional do seu cérebro. Então o cérebro inferior e primitivo assume total controle e a comunicação lógica é perdida. No Podcast do Lar Montessori, Gabriel Salomão provoca  e afirma categoricamente  que as birras não existem, porque a ideia da birra parte da ideia de que a criança faz isso de propósito. O que já sabemos que não é o caso. Essa reação é uma reação saudável a uma situação de opressão que resulta em revolta e/ou desespero. 

Na educação montessoriana a tarefa do adulto preparado é criar um ambiente adequado para que o bebê ou a criança encontre o mínimo de obstáculos ao seu desenvolvimento, suprindo a sua força interna que determina a sua necessidade de absorção construtiva do ambiente de acordo com os seus períodos sensíveis. O bebê/criança precisa poder se desenvolver livremente longe da opressão exercida pelo adulto que quer a todo custo “ensinar” a criança coisas que a criança quer e precisa aprender no seu tempo.

O bebê ou criança é guiada por sua força interna. É um “EU” mais forte que qualquer estímulo externo. A depender do seu período sensível, é como se ligasse uma chavinha lá dentro que a levasse a experimentar certas atividades e repetir essas atividades até a perfeição. Ao ser interrompida ou não ter essa necessidade suprida, a criança se sente oprimida e se desespera. O papel do adulto é se preparar para ler os sinais dessa força interior, se guiando pelos períodos sensíveis e a atual demanda do seu bebê ou criança. Além disso, deve (ou pode aprender a) saber ler os sinais de revolta e/ou desespero ANTES que a explosão aconteça. Um bebê ou criança que tem as demandas da sua força interna atendidas, recebe pacificamente o não e é uma criança que raramente experimentará o desespero, chamado “birra”.

 

Voltemos ao nosso exemplo. Quando você diz não para seu filho, quando ele quer sair na rua sem casaco em um dia de neve, ele não entende o perigo que esta decisão pode representar. Na perspectiva da criança, ela pode pensar que se não está sentindo frio dentro de casa, também não estará na rua; ou talvez ela não se importe com o ar gelado que toca a sua pele e a ideia de hipotermia não é inerente ao cérebro. Porque não poderia sair na rua sem casaco, que mal há nisso? Quando recebe um não a criança se vê oprimida, tendo seus desejos mais profundos reprimidos. Ela então entra em desespero e se revolta. São muitos sentimentos: incapacidade, frustração, tristeza, incompreensão, raiva, desamparo. É possível que essa criança tenha sido corrigida ou ajudada desnecessariamente inúmeras vezes ao longo do dia, assim como tenha recebido olhares de desaprovação ou não recebido a atenção e afeto que necessitava. Talvez tenham sido pequenos gestos dos adultos à sua volta que possam ter gerado sentimentos diversos. Então, ao receber um “não” por um motivo que para ela não é lógico, ela desespera. 

Releia novamente o exercício, mas agora ao invés de imaginar você no trabalho, com seus colegas e chefe, imagine que é a sua criança, brincando em casa, pois para ela isso é um trabalho muito sério. Ela quer fazer as coisas sozinha, você vive corrigindo. Ela mostra o que fez, você não presta atenção, faz qualquer comentário e segue com suas tarefas. Ela pede para participar das suas tarefas, já que você dá tanta atenção a elas, você nega, afinal não há nada que ela possa fazer sem atrapalhar. Chega então o momento de vocês darem um passeio lá fora, você finalmente terminou suas tarefas e decidiu que era a hora de estar unicamente presente com sua criança, está frio e ela se recusa a usar um casaco. Você diz que ela não pode sair se não usar um casaco. Ela se jogou no chão, foi demais para ela. Você diz a ela que pare de chorar, não é nada demais. 

Quando a criança se desregula, o cérebro primitivo assume o controle. Por isso, não adianta querer explicar que ela pode se resfriar ou ter hipotermia enquanto ela estiver se debulhando em lágrimas e jogando coisas pelo ar. Ela não pode ouvir, seu cérebro superior foi desconectado e o cérebro primitivo está reagindo a uma opressão. Ela não liga para a lógica pois, naquele momento, a lógica não existe. Ela precisa se regular e, para isso, você precisa se regular. Então, quando ela consegue abrir a porta da escada e conversar novamente com o cérebro superior, ela pode ouvir as razões do porque ela não pode sair sem um casaco adequado e usando apenas a sua manga curta favorita em um dia de neve. Talvez você precise repetir algumas tantas vezes a mesma informação ao longo dos anos, afinal, seu cérebro superior ainda não está plenamente formado, mas eventualmente, ela vai aprender. Não conheço um adulto sequer que já tenha tido vontade de sair de manga curta em um dia de muito frio e assim o fez.

Nós aprendemos. Elas irão aprender também. 

Autoras: Ana Carolina Martinez e Katia Aiko Murata Arend

Para ler mais:

  • Livro: O cérebro da criança –  por Daniel J. Siegel e Tina Payne Bryson
  • Livro: A descoberta da criança e O segredo da infância – por Maria Montessori
  • Livro: educação positiva – por Jane Nelsen e Adrian Garcia
  • Podcast: Lar Montessori de Gabriel Salomão. EP: Birras não existem – e o que fazer com ela

1 comentário em “Birras Existem?”

  1. Janaína de Araújo Martinez

    Leitura fantástica,muito clara .O exemplo do adulto depois transferido para criança deixou claro esse sentimento.
    Meus filhos já são adultos com certeza isso teria me ajudado muito,mas ainda bem que tenho meu neto assim vou conseguir contribuir para o desenvolvimento saudável dele.

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